Coreia do Sul reprime o aborto para aumentar a taxa de natalidade do país
Enquanto mostrava imagens de fetos na tela de seu computador, a Dra. Choi Anna descrevia o que acontecia a eles durante um aborto. Por anos, ela disse, lavava suas mãos em contrição após cada um que realizava.
Seu colega, o Dr. Shim Sang-duk, disse que antes de interromperem a prática em setembro, sua clínica para mulheres Ion, em Seul, fazia 30 abortos por mês, o dobro do número de bebês nascidos ali. Quase todos eram ilegais.
"Vendíamos nossa alma por dinheiro", disse a Dra. Choi. "O aborto era uma forma fácil de ganhar dinheiro".
Em um país onde o aborto é amplamente difundido e, com algumas exceções, contra a lei, a Dra. Choi e o Dr. Shim esperam causar a primeira discussão pública séria da Coreia do Sul a respeito da ética do procedimento. Em novembro, eles e dezenas de outros obstetras realizaram uma coletiva de imprensa para pedir "perdão" por terem feito abortos ilegais.
O grupo formado por eles, o Gynob, apelou a outros médicos que declarassem se haviam feito abortos ilegais. Em dezembro eles fundaram outra organização, a Médicos Pró-Vida, que busca dissuadir mulheres de fazer abortos e opera uma linha direta para denunciar clínicas que os fazem de forma ilegal. Neste mês eles pretendem começar a denunciar à polícia profissionais que realizam esses abortos.
Ainda que a principal tática do Gynob tenha sido evidenciar a hipocrisia de se ter uma lei que quase nunca é aplicada, o objetivo do grupo não é resolver isto liberalizando a lei, mas sim pondo um fim aos abortos como um todo.
"Aborto é assassinato", disse o Dr. Park Sung-chul, um obstetra e membro do Gynob.
A campanha moralista do Gynob é incomum na Coreia do Sul, onde o aborto carrega pouco do significado emocional ou religioso que tem em muitos países ocidentais.
"O aborto nunca se tornou uma questão polêmica aqui porque a sociedade o considera um problema de família, e é um forte tabu discutir questões de família em público", disse Hahm In-hee, professora de sociologia familiar na Universidade Feminina de Ewha, em Seul.
O Gynob tem o apoio de ativistas cristãos, mas o grupo diz que suas motivações não são religiosas e que tem membros não-cristãos. E ainda que algumas feministas e católicos tenham lutado respectivamente a favor e contra os direitos de aborto, esses esforços atraíram pouca atenção pública. O aborto ainda não surgiu como uma questão de campanha política aqui.
Mas a campanha do Gynob coincide com uma reavaliação pública do aborto pelo governo, que está buscando meios de reverter um declínio na taxa de natalidade da Coreia do Sul.
A Lei sobre a Saúde da Mãe e da Criança permite o aborto somente quando a saúde da mãe está em sério risco, ou em casos de estupro, incesto ou doenças hereditárias graves. Ele nunca é permitido após as 24 primeiras semanas de gravidez.
Com base em informações de seguradoras e em um estudo patrocinado pelo governo, pesquisadores acadêmicos concluíram que essas exceções se aplicavam a somente 4% da estimativa de 340 mil abortos realizados em 2005. Mas naquele ano, somente um caso de aborto ilegal - que, no papel, é passível de pena de até um ano na prisão para a mulher e dois para o médico - foi a julgamento, segundo informações que promotores submeteram ao Parlamento em outubro.
Durante décadas o governo sul-coreano fez vista grossa, enxergando uma alta taxa de natalidade como um impedimento ao crescimento econômico. Nos anos 1970 e 1980, as famílias com mais de dois filhos eram acusadas de serem antipatrióticas, com pôsteres oficiais nos vilarejos sul-coreanos passando essa mensagem. Até o início dos anos 1990, os homens podiam ser dispensados do serviço militar obrigatório se fizessem vasectomia.
Agora, o governo concluiu que essa política foi eficaz demais.
A taxa de fertilidade da Coreia do Sul, que era de 4,5 filhos por mulher nos anos 1970, caiu para 1,19 filhos em 2008 - uma da mais baixas do mundo. O governo teme que a recente crise financeira tenha diminuído os números ainda mais, e que a população do país, que envelhece rapidamente, afetará a viabilidade da economia.
Em novembro, o presidente Lee Myung-bak convocou uma reunião do governo para pedir por passos "ousados" que elevassem a taxa de natalidade do país.
"Apesar de não termos a intenção de responsabilizar ninguém por todos esses abortos ilegais realizados no passado, devemos ser linha dura com eles a partir de agora", a ministra da Saúde Jeon Jae-hee disse nessa reunião.
Mas Jeon disse ainda que qualquer repressão deverá vir acompanhada de um aumento nos honorários médicos. Acredita-se que a cota máxima do governo sobre pagamentos por serviços médicos tenha incentivado os médicos a realizar suas atividades por fora, e potencialmente muito mais lucrativos, serviços como abortos ilegais.
Com menos mulheres tendo bebês e o governo limitando honorários médicos, muitas clínicas de obstetrícia estão passando dificuldades. Alguns obstetras mudaram para clínicas mais lucrativas, de estética e tratamento para obesidade. Para aqueles que permanecem, o aborto - que custa cerca de 400 mil wons (R$ 590) e é pago adiantado em dinheiro, uma vez que não é coberto pelo seguro - se tornou "uma fonte de renda da qual achamos muito difícil abrir mão", disse Dr. Kang Byong-hee, um obstetra de Paju, norte de Seul.
Além da política governamental e do fator econômico do sistema de saúde, fatores sociais contribuíram para o índice de abortos. Uma preferência por meninos e uma rejeição aos deficientes levou à amplamente difundida prática de abortar fetos de meninas ou daqueles com defeitos fisiológicos, disse Choi Sung-jae, professor de bem-estar social na Universidade Nacional de Seul. Um estigma contra mães solteiras, a crescente participação das mulheres na força de trabalho e o alto custo da educação também são vistos como responsáveis pelo movimento.
"Vemos uma tendência a ter uma criança perfeita e abortar o resto", disse Dr. Choi. "Tínhamos mulheres pedido por um aborto simplesmente porque tinham tomado remédio para resfriado ou bebido demais enquanto grávidas".
A campanha anti-aborto do Gynob encontra resistência, principalmente de outros médicos.
"Eles têm o mérito de trazer à tona uma anomalia social difundida, mas dissimulada, entretanto não podemos concordar com suas táticas radicais", disse Baik Eun-jeong, uma obstetra que administra uma clínica no luxuoso distrito de Kangnam, em Seul, e representa a Associação Coreana de Obstetras e Ginecologistas.
A associação, que afirma ter 4 mil membros, diz que uma repressão súbita que não aborde as causas do aborto só causarão problemas maiores.
"Agora mais mulheres irão para o exterior para fazer abortos", disse a Dra. Baik. "Abortos ilegais serão cada vez mais clandestinos, causando mais acidentes médicos. Haverá mais crianças abandonadas". Enquanto isso, o governo começou a divulgar uma nova mensagem em comunicados de serviços públicos e pôsteres no metrô: ter mais bebês é mais patriótico. "Com o aborto, você está abortando o futuro", diz um anúncio. O último orçamento do governo pede por maiores bônus em dinheiro para famílias com mais de dois filhos, e maior ajuda financeira a mães solteiras necessitadas, além de fiadores para casais que procuram por clínicas de fertilização.
Todas essas vozes estão alimentando uma discussão pública mais ampla sobre o aborto, enquanto o Parlamento considera revisar a Lei sobre a Saúde da Mãe e da Criança. O presidente Lee disse na reunião de novembro: "Essa é a hora de iniciar o debate".
Tradução: Lana Lim
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